top of page
Search

Oferta em xeque e tensões no campo: a urgência da reforma agrária no Brasil

Updated: Apr 25

Terra em contraste. Design feito por CLICA.
Terra em contraste. Design feito por CLICA.

O Brasil vive hoje uma encruzilhada no sistema de produção e distribuição de alimentos. Enquanto a alta de preços e as crises climáticas expõem a fragilidade da oferta, a ausência de uma política de reforma agrária consistente aprofunda conflitos no campo, escancara desigualdades históricas e compromete a segurança alimentar da população. Para a presidenta da Abra (Associação Brasileira de Reforma Agrária), Yamila Goldfarb, a retomada dos processos de acesso à terra e a garantia dos direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais são centrais para enfrentar a crescente fome e para promover justiça social, reparação histórica e sustentabilidade ambiental.


1.⁠ ⁠Contexto e legado histórico

Em 17 de abril de 1996, 21 trabalhadores sem-terra foram massacrados pela polícia no município de Eldorado dos Carajás (PA). A data tornou-se marco nacional de luta pela reforma agrária, lembrada anualmente como forma de reavivar a urgência de democratizar o acesso à terra. Segundo Yamila Goldfarb, doutora em ciências humanas pela USP, essa reivindicação mantém-se viva há mais de quatro décadas não apenas por questões sociais, mas também pelas atuais demandas climáticas e de soberania alimentar.


O Brasil possui um déficit de oferta de alimentos para o consumo interno. “A maior parte do nosso território produz commodities para exportação, que não se transformam em comida na mesa dos trabalhadores”, afirma Goldfarb. Citando dados do Censo Agropecuário do IBGE, ela explica que apenas uma pequena fração da área agricultável dedica-se a hortaliças, frutas e legumes – responsabilidade, sobretudo, da agricultura familiar. Sem a reforma agrária ampliando o número de produtores de alimentos, a concentração de terras em latifúndios para o agronegócio agrava o desabastecimento e eleva o custo do prato do brasileiro.


2.⁠ ⁠Do agronegócio ao “agro”: um discurso hegemônico

O termo agronegócio, nas décadas de 1990 e 2000, foi ressignificado como “agro” – tecnologia, cultura pop, motor da economia. Segundo a presidenta da Abra, essa narrativa uniformizante serve a interesses políticos e midiáticos, criando a ilusão de que grandes fazendas exportadoras e pequenos produtores familiares compartilham mesmas condições e benefícios. “O agronegócio implementou uma estratégia política e midiática de se fazer valer como sendo tudo e todos: ‘É o motor da economia brasileira, representa o campo brasileiro.’ E essas duas afirmações são mentiras”, denuncia.


Em termos de Produto Interno Bruto (PIB), afirma Goldfarb, o cálculo de cerca de 30% atribuído ao setor considera toda a cadeia produtiva – da porteira adentro ao processamento e à distribuição. Mas se isolar a produção “dentro da porteira”, o percentual cai para aproximadamente 8%. Ainda, o agronegócio usufrui de incentivos fiscais e da Lei Kandir, que isenta a exportação de bens primários, tornando mais vantajoso exportar do que abastecer o mercado interno. Além disso, áreas queimadas no Brasil têm 78% de vegetação nativa – um reflexo dos embates entre preservação ambiental e avanço da fronteira agrícola.


3.⁠ ⁠Segurança alimentar e limites do mercado

O acesso aos alimentos depende de dois pilares: oferta e renda. A crise global recente, as enchentes no Rio Grande do Sul e a greve dos caminhoneiros em 2018 são exemplos de como a ausência de estoques públicos e de uma política de abastecimento regionalizada deixa o país vulnerável. Sem estoques em instituições como a Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), não há como intervir no preço mínimo ao produtor nem impedir aumentos abusivos ao consumidor.


“É preciso ter mais oferta de alimento, atrelada a uma política de abastecimento que pense as regiões do Brasil, respeite os hábitos alimentares e estimule circuitos curtos”, defende Goldfarb. Ela relata suas andanças pelos mercadões locais: em várias capitais, hortaliças vêm sempre de São Paulo, mesmo em estados com potencial produtivo, como Mato Grosso. Essa logística desarticulada onera o alimento e reduz a renda do pequeno produtor.


4.⁠ ⁠Justiça social e reparação histórica

A raiz das desigualdades fundiárias brasileiras encontra-se no encontro pervertido entre escravidão e formação das fazendas imperialistas. Após a Lei de Terras de 1850, escravizados libertos ficaram sem acesso à terra nem à educação. Décadas depois, o regime militar deslocou e expulsou populações rurais, sobretudo negras, à bala, acelerando a “modernização” do campo. “Temos uma dívida monstruosa com a população negra. A reparação só pode ser coletiva, com reforma agrária e garantia dos direitos territoriais de todos os povos e comunidades tradicionais”, afirma Goldfarb.


No campo contemporâneo, essa herança se reflete na violência agrária. Territórios indígenas e de quilombos são hoje alvo de disputa e conflito – daí surge casos como o assassinato de Ronilson de Jesus Santos, executado em Anapu (PA), uma das regiões com maior tensão fundiária no país. A extrema direita, com discursos de “libera tudo”, tornou-se aliada do agronegócio ao prometer afrouxar regras ambientais e indigenistas, patrocinando legalizações de grilagem nos estados.


5.⁠ ⁠Desafios institucionais e legais

O Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) enfrentou nos últimos anos um processo de desmonte: orçamento contido pelo teto de gastos, judicialização dos processos de desapropriação e ingerência ideológica nas carreiras. Há ainda o preocupante fenômeno da “bolsonarização” de servidores, aliado a leis estaduais que entregam terras irregulares a fazendeiros com descontos de até 90% (Lei 17.577 em São Paulo). Em paralelo, o governo federal ainda não revogou a Instrução Normativa 112/2021, editada sob Bolsonaro, que permite mineração e grandes empreendimentos em assentamentos rurais.


6.⁠ ⁠Caminhos para o fortalecimento da agroecologia e da agricultura familiar

Para além da reivindicação histórica por acesso à terra, Yamila Goldfarb aponta medidas práticas que podem resgatar a oferta de alimentos saudáveis e descentralizar a produção:


•⁠ ⁠Incentivar assentamentos produtivos sob bases agroecológicas, respeitando ciclos hidrológicos e promovendo o reflorestamento.

•⁠ ⁠Reconstruir e ampliar a política de estoques públicos de alimentos, permitindo ao Estado intervir na oferta e nos preços em momentos de crise.

•⁠ ⁠Elaborar protocolos estaduais e federais de abastecimento regionalizado, com prioridade para circuitos curtos e hábitos alimentares locais.

•⁠ ⁠Garantir crédito público e assistência técnica diferenciada para a agricultura familiar, separando-a do crédito subsidiado ao agronegócio.

•⁠ ⁠Integrar a reparação histórica à política agrária, priorizando a titulação de terras a comunidades tradicionais, quilombolas e povos indígenas.


7.⁠ ⁠Conclusão

A reforma agrária volta a ocupar lugar central no debate sobre fome, desigualdade e mudanças climáticas no Brasil. Somente com acesso democrático à terra e políticas públicas que articulem reforma agrária, agroecologia e distribuição equitativa será possível enfrentar o déficit de oferta de alimentos, reduzir a dependência das commodities para exportação e promover justiça social para a população negra do campo. O movimento que começou em 1996, com o Massacre de Eldorado dos Carajás, permanece atualizado: sem reforma agrária, não há como garantir a segurança alimentar nem construir um campo verdadeiramente sustentável e inclusivo.


References / Fontes


Dois Rostos da Segurança Alimentar. Design feito por CLICA.
Dois Rostos da Segurança Alimentar. Design feito por CLICA.


 
 
 

Comments


bottom of page